No âmbito da actividade 2 da unidade de crédito Educação e Sociedade em Rede, do Mestrado em Pedagogia do E-Learning da Universidade Aberta, pretendo comentar a noção de "cibercultura" que o filósofo Pierre Lévy (Tunísia, 1956) aborda no seu livro Cibercultura.
As perguntas colocadas pelo Prof. António Teixeira, docente da u.c. acima referida (vide página principal do curso na Moodle), focam os pontos de tensão existentes entre o contexto contemporâneo – “mutação contemporânea da relação com o saber” (Lévy, pág. 157) – e a nossa liberdade enquanto cidadãos. Que responsabilidade ainda temos hoje na construção do património cultural dos cinco continentes? Qual é o conhecimento emergente e a nova vivência humana na era da imersão interactiva?
Uma das preocupações do filósofo francês Pierre Lévy, revelada na sua obra Cibercultura, é o “dilúvio informativo” que move a cultura de massa, actualmente utilizadora frequente da Internet. A partir de agora, cada indivíduo ocupa uma posição singular e evolutiva numa sociedade cujos conhecimentos emergentes são abertos, contínuos e não lineares e a cibercultura, enquanto universal sem totalidade – “A cada minuto que passa, novas pessoas acedem à Internet, novos computadores são interconectados, novas informações são introduzidas na rede. Quanto mais o ciberespaço se amplia, mais este se torna “universal”, e menos o mundo informacional se torna totalizável”. (Lévy, pág. 111.) –, transforma as condições de vida em sociedade. Mas será que os indivíduos podem controlar ou seleccionar as informações recebidas, terão alguma acção sobre a emissão dessa informação?
Nesta obra, Lévy esclarece, desde logo, os termos "ciberespaço" e "cibercultura". "O ciberespaço (que também chamo de rede) é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto ao neologismo “cibercultura”, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço." (pág. 17).
É curioso verificar que o antigo “receptor” passa a produzir e a emitir a sua própria informação, de forma livre e planetária. As práticas comunicacionais da Internet mostram que as pessoas estão a produzir vídeos, fotos, música, escrevem em blogs, criam fóruns e comunidades, desenvolvem softwares e ferramentas da Web 2.0, trocam música, etc. Aliás, um dos fenómenos verificados e estudados por Castells (2007), quanto ao carácter da sociedade contemporânea, é a importância crescente que esta dá à informação e ao conhecimento (a sociedade do conhecimento enquanto novo paradigma tecnológico). Passámos da era industrial para a era informacional e esta mudança histórica deveu-se ao advento das novas tecnologias de comunicação e informação. Embora afirme que as redes não são uma nova forma de organização social, estas tornaram-se uma característica chave na morfologia digital, porque “são estruturas abertas, capazes de se expandir de forma ilimitada, integrando novos nós(*) desde que consigam comunicar dentro da rede, nomeadamente, desde que partilhem os mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objectivos de desempenho).” (Castells, pág. 607). Porém, dever-se-á confundir este fenómeno social com excesso de informação?
Na cultura pós-massiva estão a ser construídos novos modelos de conhecimento e, no âmbito da cibercultura, é possível identificar novos actos quotidianos: produzir, colocar em circulação e disponibilizar livremente cada vez mais informação. Para dar exemplos concretos, podemos dizer que blogs e podcasts tornaram-se novas formas de emissão textual, imagética e sonora pelas quais cada utilizador faz o seu próprio veículo. Os blogs são hoje um fenómeno mundial de emissão livre de informação sobre diversos formatos (pessoais, jornalísticos, empresariais, académicos, comunitários...). Os podcasts, por sua vez, são formas livres de emissão sonora pelas quais cada utilizador pode criar o seu próprio programa e disseminá-lo pela rede.
A verdade é que a revolução da cibercultura implica novos sentidos da tecnologia – que ideias novas resultam deste objecto inventado para ser utilizado, também, como meio de comunicação? –, uma vez que esta se tornou no novo ambiente material para o Homem, tendo um impacto considerável na sua vida, com signos e imagens por meio dos quais ele atribui sentido ao mundo. Não podemos deixar de pensar que esta tecnologia é produto social e cultural e com a revolução da informática, voltamos ao velho sonho de um mundo da comunicação livre, sem entraves, democrático, global, porque, como afirma Lemos (2008), “no fim do século XX, com o surgimento dos media “pós-massivos” (eletrónico-digitais), a relação com o espaço passou por transformações a partir da liberação da emissão e da conexão generalizada por redes online”. O novo paradigma traduz o mundo em dados binários, para posterior processamento em máquinas informacionais, os computadores. A dominação agora é digital e, como afirma Lévy, “o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que amplificam, exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas humanas: memória (bancos de dados, hiperdocumentos, arquivos digitais de todos os tipos(, imaginação (simulações), percepção (sensores digitais, telepresença, realidades virtuais), raciocínios (inteligência artificial, modelização de fenómenos complexos.” (pág. 157).
Mas resta perguntar para onde essa revolução nos levará. Não basta emitir sem se conectar, compartilhar, por exemplo, através da Internet. A internet traz-nos a possibilidade de actuarmos em rede, onde cada um de nós é um “nó”. Não há centro, a acção de cada nó é como um microcosmos dentro do cosmos, que pode influenciar e reconfigurar toda a rede. É preciso emitir em rede, entrar em conexão com outros, produzir sinergias, trocar informação, fazê-la circular, distribuí-la. “A emergência do ciberespaço acompanha, traduz e favorece uma evolução geral da civilização. Uma técnica é produzida dentro de uma cultura e uma sociedade encontra-se condicionada [e não determinada] por suas técnicas." (Lévy, pág.25). São estas técnicas que abrem algumas possibilidades, algumas opções culturais e sociais (a técnica condiciona), sem as quais o pensamento contemporâneo seria diferente. Esse segundo princípio, a conexão em rede online, parece ser mesmo uma característica fundamental da cibercultura, enquanto forma de transmissão. Como diz Lévy, “a sua principal operação é a de conectar no espaço, de construir e de estender os rizomas do sentido”. (pág. 249). Desde o início, a Internet caracteriza-se como lugar de conexão e partilha. Foi assim que surgiram as primeiras listas de discussão, as trocas de email, os chats...
Gostava ainda de destacar três exemplos referidos no capítulo dedicado ao movimento social da cibercultura (p.123-132), em que Pierre Lévy recorda que a emergência do ciberespaço é fruto de um verdadeiro movimento social da juventude. São desenvolvidos três princípios que sustentam este movimento social da cibercultura: a interconexão (p. 127), as comunidades virtuais (p. 127-130) e a inteligência colectiva (p. 130-132).
A interconexão transfere para uma existência diferente o próprio ciberespaço: “Os veículos de informação não estariam mais no espaço mas (…) todo o espaço se tornaria um canal interactivo.” (pág. 127). Constitui-se, assim, um mundo físico para suportar a comunicação universal que rejeita o isolamento. Aquilo que possamos imaginar como máquinas de comunicação passarão, em breve, a estar interligadas na Internet e este novo ambiente – o ciberespaço obedece ao “imperativo categórigo da cibercultura” (pág. 127) – proporcionará um segundo tipo de conexão, neste caso, das ideias que podem, por sua vez, ser agrupadas em tribos ou em comunidades virtuais. “A interconexão constitui a humanidade em um contínuo sem fronteiras”, afirma Lévy, porque a “cibercultura aponta para uma civilização da telepresença generalizada.” (pág. 127).
Como as comunidades virtuais processam a cooperação (afinidade de interesses e conhecimentos) através da troca de informações que a consolidam enquanto grupo, independente de proximidades geográficas, elas apoiam-se partindo da interconexão.
As relações sociais que acontecem nessas comunidades não impedem que se criem emoções entre os participantes do ciberespaço, embora “a comunicação por meio de redes de computadores [não] substitua (…) os encontros físicos.” (pág. 128). Aliás, “afinidades, alianças intelectuais e até mesmo amizades podem desenvolver-se nos grupos de discussão [online].” (pág. 128).
Informação e sentimento estão presentes numa comunidade virtual em que as tomadas de posição permitem, por exemplo, as personalidades dos intervenientes. Este é um bom argumento para concluir que esta comunidade é bem real, sendo um colectivo que troca informações e constrói uma opinião pública, gerando um movimento de ideias e, portanto, de intervenção social – não há espaço para uma irresponsabilidade anónima, todos estão atentos ao que é transmitido pelo outro que está do lado de lá do ecrã e noutro ponto do planeta -, dentro mesmo do ciberespaço e na cibercultura. E este fenómeno de comunicação colectiva (processos abertos de cooperação, aprendizagem cooperativa) “é a expressão da aspiração de construção de um laço social, que não seria fundado nem sobre links territoriais, nem sobre relações institucionais e de poder, mas sobre a reunião em torno de centros de interesses comuns.” (pág. 130).
O terceiro princípio da cibercultura, base também do movimento social acima referido, é a inteligência colectiva. Pierre Lévy acredita que as redes de comunicação e as memórias digitais irão em breve suportar as representações e mensagens que circulam pelo planeta e defende a hipótese de que é possível, e até desejável, produzir dispositivos que encarnem ou materializem efectivamente a inteligência colectiva.
Este filósofo apresenta a inteligência colectiva como um novo tipo de pensamento sustentado por conexões sociais que são viáveis através da utilização das redes abertas da Internet. Aceita o pressuposto que “o melhor uso que podemos fazer do ciberespaço é colocar em sinergia os saberes, as imaginações, as energias espirituais daqueles que estão conectados a ele.” (pág. 131) Acredita que as sociedades tendem a organizar-se cada vez menos em padrões formais e a valorizarem cada vez mais a aprendizagem cooperativa e colectiva como nova forma de organização.
Trocar informações mais verticalizadas dentro de centros de interesse significa criar uma rede especializada, onde a circulação da informação (através da interconexão) acontece de forma mais rápida e centrada (por meio das comunidades virtuais), um colectivo inteligente que se apropia, mais facilmente, das alterações técnicas que reduzem “os efeitos de exclusão ou de destruição humana resultantes da aceleração do movimento técnico-social.” (pág. 29)
Fora da interconexão e de uma comunidade virtual, somos, cada um de nós, um elemento contribuinte do inconsciente colectivo – um movimento etéreo, invisível, intuitivo e não cerebral. No ciberespaço, o nosso colectivo é (mais) consciente, inteligente e mais visível e, enquanto suporte da inteligência colectiva, o ciberespaço é uma das condições principais do seu próprio desenvolvimento. Porém, este não é determinado automaticamente, trata-se apenas de um ambiente propício à criação dessa inteligência.
Pierre Lévy conclui que a emergência do ciberespaço, da cibercultura é despoletada pela abertura para a alteridade que movimenta as comunidades virtuais, a inteligência colectiva e a interconexão. Estes princípios, no global, são a essência e condição da cibercultura.
(*) “A rede é um conjunto de nós interligados. Um nó é o ponto no qual uma curva se intercepta. O nó a que nos referimos depende do tipo de redes em causa”. (Castells, pág. 606).
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REFERÊNCIAS
CASTELLS, Manuel (2007). "A sociedade em rede: A era da informação: Economia, sociedade e cultura" (3ª ed., Vol. 1). (A. Lemos, C. Lorga, & T. Soares, Trads.) Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
LEMOS, André (2007). "Ciberespaço e tecnologias móveis: processos de territorialização e desterritorialização na cibercultura". In: MÉDOLA, Ana Silvia; ARAÚJO, Denise; BRUNO, Fernanda (Org.). “Imagem, visibilidade e cultura midiática”. Porto Alegre: Sulina, p. 277-293. Disponível em www.andrelemos.info/artigos/territorio.pdf , acedido em Abril de 2010.
LEMOS, André (2008). "Mídia locativa e território informacional". SANTAELLA, Lucia;
ARANTES, Priscila (Org.). Estéticas tecnológicas: novos modos de sentir. São Paulo: EDUC. Disponível em www.andrelemos.info/artigos/midia_locativa.pdf, acedido em Abril de 2010.
LÉVY, Pierre (1994). "Inteligencia colectiva: por una antropologia del ciberespacio". Disponível em http://www.4shared.com/document/RqH5viQd/Levyinteligencia_colectiva.html?err=no-sess, acedido em Abril de 2010.
LÉVY, Pierre (1999). "Cibercultura", Editora 34, S. Paulo.
TRIVINHO, Eugênio (2003). "Cibercultura, sociossemiose e morte. Sobrevivência em tempos de terror dromocrático", GT Sociedade Tecnológica, COMPÓS. Disponível em http://www.comunica.unisinos.br/tics/textos/2003/GT12TB2.PDF, acedido em Abril de 2010.
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